Já lá vão uns anitos mas ainda me recordo perfeitamente do dia de S. João de mil novecentos e sessenta e picos. Recordo por exemplo que, estando a máquina debulhadora fixada na eira e pronta para a debulha daquele ano, onde iria permanecer pelo menos uns oito dias, lutando contra a força braçal de dez a quinze homens, ao calor abrasador e ao rong-rong do “tractor” que não lhe dava descanso, o meu pai me ter chamado de parte e, sem grandes rodeios me dizer:
-Olha lá rapaz, como sabes, a máquina debulhadora amanhã, mesmo sendo dia de S. João, ao nascer do Sol, não vai deixar de deitar palha para o chão, como tal, alguém terá que a apanhar com o rodo puxado pela parelha de mulas, como habitualmente.
A estas palavras sentenciosas de meu pai, não obstante haver baile na aldeia, até ao nascer do Sol, ao qual eu não podia faltar, respondi com toda a franqueza e convicção:
-Pai, não se preocupe que, a essa hora, ali estarei, debaixo dela, para retirar toda a palha que possa produzir.
E assim foi, ao nascer do Sol, ali estava eu, “atascado” em palha até aos olhos, mas a cumprir uma missão que era destinada aos “moços” mais novos daquele tempo.
Como eu o compreendo...
ResponderEliminarTinha 10 anos, completado o curso superior de 4ª. classe, e "ingressei" na Farmácia Godinho, na Rua do Relógio, onde comecei por aprender a lavar frascos e a fazer lixívia...entre outras tarefas da maior importância.
Quando parti, já manipulava pílulas, xaropes, tinturas, solutos e outras drogas...
Domingos, feriados ou férias, foi coisa a que, nos mais de quatro anos de "curso", nunca tive direito.
Não me posso queixar do "ordenado"...por o não ter! Estava "aprendendo" a ser o que acabei não sendo...
Só quando já demandara Lisboa é que o meu "patrão" me escreveu. Queria que eu voltasse e pagava-me 600 escudos/mês. Um ordenadão...mas não voltei..por opção consensualmente familiar.
Essa, era a Mértola do meu tempo de moço...e estará assim tão mudada?
Quantos partem nestes tempos ? Porque partem ?
Haveremos de procurar clarificar as mudanças.
Vamos a isso ?
De qualquer dos modos, fiquei agradado e sensibilizado com a descrição que fez o favor de nos trazer.
Obrigado.
Caro Martins,
ResponderEliminarEu é que tenho de agradecer pela referência elogiosa que faz ao pequeno apontamento que transpus para o blogue, recordando um episódio da minha juventude.
Obrigado, por isso.
Folgo muito em saber que, pelos vistos, esta terra encantadora lhe abriu novos horizontes para a vida.
Cumprimentos.
Meu Caro Resistente
ResponderEliminarObrigado pelo episódio de "há uns anitos" que nos relatou aqui!
E pergunta o nosso comentador Martins "...e Mértola, estará assim tão mudada?"
Está, para bem de todos nós. Não só Mértola mas também o concelho!
Ainda me lembro dos tempos da verdadeira exploração que assolava os trabalhadores rurais do nosso concelho. Alguém se lembra, por exemplo, do "mercado" de homens, num quadro de semi-escravatura, que se exibiam em tronco nu, na esplanada do Café Guadiana,para disputa dos lavradores que os recrutavam segundo o seu aspecto físico? Quero este e aquele também (bestas de trabalho, afinal!) que são os mais corpulentos...
"Bestas de trabalho" para mourejar de sol a sol por uns míseros vinte cinco tostões ao dia. "Comidos" com diziam os patrões, isto é, com alimentação! E que alimentação! Uma sardinhita frita e um bocado de pão duro para acompanhar. De uma das vezes, recordo-me de um dos homens (como lhes chamavam os patrões),revoltado com a dimensão da sardinha que lhe coubera em sorte, a ter atirado ao chão enquanto dizia: vai-te criar magana e depois aparece!
E às quarta-feiras e sábados, a nossa vila era pacificamente invadida por mulheres famintas, sempre vestidas de preto e lenço na cabeça, vindas de todo o concelho, a esmolar uns tostões de porta em porta!
Felizmente que os mais novos já não assistiram a isto! Mas aconteceu, lá isso aconteceu!
Só perguntei: quantos partem ? Porque partem ?
ResponderEliminarJá agora e quanto às mulheres que vinham, alegadamente, às quartas e sábados...fique sabendo que era, quase, exclusivamente, aos sábados e não eram só mulheres, eram, também, homens;
Mais: não era na esplanada do Manuel Dias, era no passeio da casa Vargas que os homens, em cacho, aguardavam p'la escolha;
Quanto aos ordenados, no anos 60, rondavam os 7 escudos/dia (sol a sol) e pão com azeitonas.
Sardinhas fritas ?
Caro Comentador Martins
ResponderEliminarNo meu comentário anterior pretendi estabelecer o confronto entre a Mértola que eu conheci da minha infância e a Mértola actual; e achei oportuno pôr a tónica na exploração do trabalhador rural, sendo certo que o episódio da sua experiência na Farmácia Godinho, que é na realidade paradigmático de outra Mértola, de outros tempos, serviu-me de ensejo para, a par da exploração de que indiscutivelmeente o caro cometador Martins foi também vítima, dar notícia de outras explorações!
Claro que também perguntou "quantos partem?" e "Porque partem?". Não sou sociólogo e falece-me competência para responder às suas, aliás, mais do que pertinentes questões. Tudo quanto poderia dizer a este propósito não passaria
da enumeração de lugares comuns: a desertificação do interior,um pouco por todo o país, as dificuldades de fixação das populações residentes, umas vezes por carência de algumas condições, outras pela atracção pelas grandes urbes, etc., etc.
Não tenho estatísticas nas minhas mãos sobre quantos partem. Quero, no entanto, lembrar que nos "velhos" tempos de Mértola e eu reporto-me a época anterior aos anos 60, - décadas de 40 e 50 - a indigência era tamanha que não havia outras saída que não fosse a permanência no concelho!
Como saberá, o êxodo começou pela cojungação de dois eventos: o fenómeno da emigração para a Europa, especialmente para as grandes cidades, e a guerra colonial. Fenómenos centrados na década de 60.
Mas realmente o caro comentador Martins também perguntou: "Mértola estará assim tão mudada"?
E a minha resposta foi sim.
Quanto às "mulheres que vinham alegadamente às quartas e sábados", não tenha o meu caro comentador Martins a menor dúvida: vinham mesmo às quartas e sábados. Reporto-me às décadas de 40 e 50. Dou de barato que a "invasão pacífica"
que mencionei no anterior post tivesse maior incidência aos sábados, mas as quartas eram dias de esmolar!E a esmagadora maioria eram MULHERES (não tenha quanto a isso a menor dúvida)! Os HOMENS, esses, com excepção de um ou outro ancião, estavam ocupados na exploração de que eram vitimas.
Não contesto que o passeio da casa Vargas fosse também local de "contratação". Mas assisti a várias "arrematações" na esplanada do Manuel Dias e em tronco nu!
O ordenado que refere dos assalariados rurais nos anos 60 talvez rondasse os 7 escudos/dia (sol a sol). Porém, se remontar aos anos 40 e, até, 50 encontrará jornas de vinte e cico tostões (dois escudos e cinquenta centavos)!
Sardinhas fritas? Sim, sardinhas fritas! Assadas ma brasa seria um luxo!
Meus caros Martins e António Transtagano,
ResponderEliminarCreio que quanto a “jornas” têm ambos razão. Efectivamente, os preços praticados nesses tempos, já recuados, eram mesmo esses. Estou a lembrar-me de um senhor do meu concelho, baixo alentejano também, que tinha a alcunha de “Vinte e Cinco Tostões e a Papa”. Este senhor, quando alguém lhe ia pedir trabalho, oferecia pura e simplesmente 2$50 e o comer. Era pegar ou largar. Daí a alcunha, bem alentejana, de que nunca mais se livrou.
Quanto ao local onde se procedia à “contratação” dos jornaleiros, diria que se situava no início da Rua Larga, à sombra das árvores que ali havia. Pelo menos, a minha memória mais remota leva-me para esse local. E, assim, temos já três locais distintos onde a “escolha” se fazia. Talvez isso tenha a ver com os vários grupos que demandavam a vila?
Sobre a tristeza de ver tanta gente a pedir esmola também não tenho dúvidas. Agora, se era só em dias específicos da semana, já não me recordo.