O meu pai era hortelão. era um artista, um geómetra da
terra, nos seus canteiros a água corria célere e sem hesitações, não ficava
empoçada e nenhuma nesga ficava à míngua de beber. Um hortelão era um
trabalhador especializado e como tal merecedor de algumas mordomias, ganhava um
pouco mais que os outros, engordava dois porquitos, recebia um borrego pela
festa, tinha uma folha de trigo para semear. Morávamos num ermo lá para os
lados de São João, entregues à nossa sorte, o meu pai que não era caçador, tinha
uma espingarda e quando de noite os cães ladravam muito assomava-se ao postigo
da porta com o calhafuz e fazia fogo, bang bang, estava ali um homem, armado,
disposto a tudo para defender os seus.
A minha mãe tinha um dom muito lá dela, sabia criar os bichos como ninguém, um borrego enjeitado, um bácoro que nasceu mais que a conta, um canito enralado, criados por ela a biberon faziam-se gente bem como os pirunitos criados a sêmea e urtigões migados, ganhava-lhes apego e quando calhava terem que vender os bichos, os meus pais ficavam uns dias estranhados um com o outro, depois passava, como tudo. Era uma grande contadora de histórias, ia-mas contando com conta peso e medida, agora vamos dar o trigo às galinhas ou vamos ver dos borregos, assim rematava ela mais uma história de réis ou princesas mouras que inventava, não sabia ler mas sabia imaginar, quem lia era o meu pai e todos os dias lia para ela.
Fazia parte das atribuições de ser-se hortelão ir à praça vender hortaliças, ficando com uma certa maquia do vendido sendo o resto para o patrão, saíam os dois pelas duas da manhã de modo a estarem na vila ao nascer do dia, carroça de mula alumiada por escassa lanterna, carregada de molhos de nabiça, espinafres, coentros, conforme a época. As noites eram escuras, nelas reinavam as zorras, os gatos bravos e havia luzes enigmáticas que por vezes os acompanhavam toda a viagem. A minha mãe rezava como lhe ensinou quem cá estava antes e, para não ter medo, dizia serem uma presença de boa companhia, umas luzes de protecção. E foram e voltaram muitas vezes, sem ter dúvida.
Falo nisto e até se me arrepiam os pelos dos braços.
Pedro Faria Bravo12 de Abril de 2020
Nota; O Pedro Faria Bravo é um contador de histórias soberbo. Atinge um patamar que me deixa inveja, mesmo quando reconta as histórias de outros, em especial quando conta as histórias que eu lhe contei. Irei continuar a partilhar aqui convosco algumas delas, e recomendo que o acompanhem, sempre que possível AQUI.
Carlos Viegas
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