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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Mértola revela segundo batistério paleocristão

 
 
10-01-2014 10:18:15
 
 
A Mértola paleocristã, de que não há registos escritos, está a desvendar-se paulatinamente através dos vestígios arqueológicos. No que é hoje a alcáçova do castelo, existiria um “complexo religioso” que, em escavações recentes, no verão passado, revelou um segundo batistério, bem preservado e com dimensões que se adivinham monumentais. Um templo encontrado a menos de 50 metros de um outro exemplar contemporâneo, que sugere uma realidade e confirma outra. A coexistência, à época, de dois ou mais cultos cristãos. E a importância estratégia desta antiga cidade portuária que, já no período islâmico, haveria de ser capital de um reino.  
Texto Carla Ferreira Fotos José Serrano

O puzzle do que se supõe ter sido um “complexo religioso”, no local que identificamos hoje como a alcáçova do castelo de Mértola, revelou recentemente uma nova peça, totalmente inesperada. Quando a equipa do Campo Arqueológico de Mértola (CAM), uma vez musealizado um primeiro espaço dedicado ao rito de iniciação cristão, pensava ter a sua conta de batistérios, eis que surge um segundo, a menos de 50 metros. E, tudo indica, coexistente no tempo, ou seja, algures entre os finais do século V e meados do século VI. O “período paleocristão por excelência”, situa Cláudio Torres, diretor do centro de investigação, lembrando a vasta coleção de lápides epigrafadas, hoje visitáveis nas ruínas de uma basílica funerária deste período e que é um dos núcleos do chamado Museu de Mértola.
A circunstância de dois batistérios “gigantescos, luxuosíssimos, um junto ao outro”, assinala o arqueólogo, pode prestar-se a várias especulações, do ponto de vista do cenário religioso que se desenhava nesta urbe após o fim do Império Romano. Mas antes de mais, é uma confirmação – mais uma – da importância estratégica da antiga cidade portuária. “Nós já desconfiávamos que havia aqui uma cidade importante; importante já em época pré-romana, depois em época romana, e, principalmente, na época paleocristã, que é aquilo que agora estamos a constatar. Cresceu, aumentou em época paleocristã e, depois, em época islâmica, foi a capital de um reino”.
A nova descoberta do CAM, trazida à luz no último verão, parece indicar também a coexistência, à época, de várias seitas cristãs neste importante porto do Guadiana. Sabe-se que, nas grandes cidades do Mediterrâneo ocidental, nos territórios de países como os atuais Tunísia, Argélia e Marrocos, as comunidades cristãs dividiam-se em grupos diferentes, nomeadamente entre católicos, que acreditavam na Trindade, e monofisitas, que rejeitavam a ideia de um Deus Pai, Filho e Espírito Santo, entre outras seitas. A tese daria lógica à existência de dois batistérios contíguos e contemporâneos mas, adverte Cláudio Torres, “são só hipóteses, não temos nenhuma prova, arqueológica ou histórica, de que este batistério é monofisita e aquele é católico, por exemplo”.


“National Geographic” publicou reconstituição em 3D A zona foi escavada nos anos 80 e deixou antever apenas “uma pequenina fresta da monumentalidade” que agora está à vista. E promete ainda mais, avisa Virgílio Lopes, que voltou à ruína arqueológica no âmbito da sua tese de doutoramento sobre Mértola na Antiguidade Tardia. “Deparámo-nos com esta situação, da qual não estávamos nada à espera, mas é bem-vinda, sobretudo devido ao estado de conservação. Não é mais um buraco, é mais uma prova arqueológica da importância de Mértola neste período”.
De facto, grande parte do batistério ainda conserva os mármores originais e a sequência estratigráfica demonstra que o “edifício caiu por si”, tendo havido uma parte posteriormente reutilizada no período islâmico. “Ao contrário do outro batistério, em que praticamente todo o mármore desapareceu”, compara Virgílio Lopes. Pelas colunas caídas, a descoberto, e pelas que ainda se adivinham no solo, pode deduzir-se também a existência de uma abóbada que seria pintada, mais um elemento a atestar a monumentalidade do edifício. Dessa cobertura, chegaram até nós pequenos fragmentos do revestimento a fresco, o maior deles do “tamanho de uma mão”. Estamos, pois, perante “um puzzle gigante, de que sabemos muito pouco. E isto é também uma novidade, porque os mosaicos já conhecíamos e os revestimentos a mármore também. Este revestimento com frescos é uma novidade interessante”, sublinha o arqueólogo, lembrando o trabalho de parceria que, durante meses, foi feito com a “National Geographic” portuguesa e que resultou na reconstituição do batistério publicada na edição de dezembro. “Foram alguns meses de trabalho, trocando informações, vendo outros batistérios, comparando, para se atingir aquele modelo, que é criticável, mas é um dos possíveis. É uma espécie de retrato robô e a esse retrato faltam muitas peças”. 

Teria existido um bispo de Mértola? Para dar vida à cena, a reconstituição, em 3D, idealiza um adulto prestes a ser batizado, com apoio de um sacerdote principal e de um auxiliar. Mas nada disto está documentado e a própria questão de quem seria o oficiante dos rituais suscita muitas dúvidas, que darão pano para mangas para as gerações vindouras de estudiosos. “Sabemos que, no século VI, quem batiza é um bispo. Não é como hoje, que é um pároco que faz o batismo na igreja, a crianças. Mas, do ponto de vista histórico, textual, não há registos de nenhum bispo católico em Mértola. Portanto, havendo aqui estes dois batistérios, tinha de haver pelo menos um bispo, que poderia ser monofisita, donatista, não sabemos. Mas o que sabemos é que, havendo um bispo, não estamos a falar de uma aldeia, de um sítio qualquer”, considera Cláudio Torres.
É a arqueologia a acrescentar “outras realidades” às fontes escritas que, no caso da Mértola paleocristã, não existem, nota Virgílio Lopes. “Se fôssemos olhar às fontes, Mértola não teria existido neste período. Não há nenhuma referência, nomeadamente à existência de um bispo. Nenhum dos bispos de Mértola, a existirem, foi aos concílios. E a arqueologia está a dizer-nos precisamente o contrário. Houve aqui um investimento grande, o que significa que este batistério foi feito para funcionar, com bispo ou bispos, de onde quer que eles viessem”.
Paulatinamente, o puzzle vai-se desvendando, mas os dados sobre os vivos são decididamente menos conclusivos do que os vestígios que retrataram a morte. “Isto é uma peça, mas esta peça faz parte de um conjunto que gostaríamos de entender um pouco melhor. Sabemos alguma coisa sobre os batistérios, sabemos alguma coisa sobre as basílicas e sobre as práticas funerárias, mas conhecemos muito mal os vivos desta época, o que é que faziam”, confessa Virgílio Lopes. Certamente estariam ligados ao rio e a um comércio próspero que não termina no período romano e se desenvolve nas centúrias seguintes. Assim, todas as especulações vão desembocar na mesma conclusão, conclui o arqueólogo: “Para existir esta elite religiosa, com estes muitos metros quadrados de construção, teve que haver muito dinheiro para fazer e manter isto. E isso é mais uma prova indiscutível de que Mértola era uma terra importante”.



Delegação de Roma visita Mértola em abril

O segundo batistério de Mértola espera, para abril próximo, uma “visita importante” de Roma, mais concretamente do Instituto Pontifício, que enviará uma delegação de 50 alunos e professores. “Isto está a ter uma dimensão internacional completamente anómala, com estes dois gigantescos batistérios”, informa Cláudio Torres, e aponta para o passo seguinte, o das “intervenções museográficas” que, necessariamente, têm que ser feitas para permitir a leitura pública desta “dualidade” religiosa que, no continente europeu, só tem paralelo na cidade italiana de Ravena.
O que era apenas um sítio interessante, sob o ponto de vista científico, mas “com pouca leitura, sob o ponto de vista museográfico”, alterou-se com as escavações do verão passado. “Agora, estamos perante uma outra realidade. A ideia é continuarmos e, dada a monumentalidade do sítio, vale bem o investimento. O que é que teremos ainda por baixo?”, questiona-se Virgílio Lopes.
Colocam-se, no entanto, os entraves práticos típicos de uma conjuntura económica difícil. Para já, têm que ser tomadas medidas de preservação do espaço, para evitar que se destrua, sendo que, a breve termo, se coloca a necessidade de criar estruturas de proteção. “Sabemos mais ou menos como é que seria o edifício mas não podemos reconstituí-lo. Temos, sim, que criar a partir daqui toda uma sugestão de volumetria que evidentemente não pode ser montada no terreno. Como, com que dinheiro? É preciso investimentos. Do Estado, da Câmara de Mértola. São questões que se vão colocando”, adianta o diretor do Campo Arqueológico de Mértola.
Virgílio Lopes está otimista. Basta-lhe a importância da descoberta e a convicção de que, mais cedo ou mais tarde, chegarão os investimentos: “Todos conhecemos a conjuntura em que estamos. Agora, uma coisa é certa: isto é demasiado importante para se destruir, para não se fazer alguma coisa. A parte divertida, de escavar, de encontrar coisas novas, está feita. Agora vem a parte de como manter isto, de como dá-lo a conhecer e como permitir que as pessoas usufruam dele. Porque é nessa dinâmica que temos que inscrever-nos aqui em Mértola. Não sabemos quem vai pagar isto, mas havemos de encontrar”. CF
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