O dia amanheceu já quente.
Custou-lhe sair da cama. Esfregou
os olhos, espantou a preguiça e num passo rápido limpou o corpo com água bem
fria, como o calor já pedia. Na cozinha já cheirava a café de “escolateira”,
preparado pela mulher e o pão quente com margarina – a manteiga que há uns
meses fazia companhia ao pão, era agora um luxo – aguçava o apetite matinal.
- Estás animado para enfrentar o
que te espera?
- Sim, se tu também estiveres aqui
para me apoiares.
Na soleira da porta, um beijo
rápido e uma festa ternurenta na barriga de sete meses deram-lhe ânimo. Apressou
o passo para se dirigir à paragem do autocarro que o conduziria à vila próxima
e ao centro de emprego. Já no seu lugar e sentindo no corpo os buracos da estrada
em obras há um tempo sem fim e sem fim à vista, perdeu-se nos pensamentos.
Tinham-se juntado muito jovens –
porque as posses não permitiam festas de casamentos - moravam numa casa modesta
mas cómoda e agora esperavam o primeiro bebé que já sabiam ser menina e se iria
chamar Maria, nome de quase todas as mulheres de ambas as famílias. E Teresa,
como a mãe. Nasceria em Outubro.
Ele, tal como Teresa, trabalhavam
na queijaria da família. Uma empresa pequena, reconhecida na região e já
premiada com várias distinções, permitia que todos vivessem desafogadamente e
contribuía para empregar mais três pessoas da aldeia. Também por esse facto
fora distinguida com uma medalha por um júri nacional entendido no assunto. Mas
a crise que se instaurou no país foi mal distribuída e afectou principalmente
“os mais pequenos”. De repente, o dinheiro ganho mudou-se todo para os impostos
e para a segurança social, deixando a família e os empregados quase sem meios
para sobreviver. E a empresa fechou. E levou sonhos, e alterou planos e
modificou vidas.
Um último solavanco do autocarro
anunciou a chegada à vila.
“Agora vai realmente começar a
minha luta” pensou enquanto o ar ainda mais quente lhe entrou nos pulmões
quando a porta se abriu.
Aproveitou as escassas sombras, e o
centro de emprego apareceu ao dobrar da esquina. Respirou fundo o ar quente de
Agosto e empurrou a porta esperando que o ar condicionado estivesse a
trabalhar, para o refrescar um pouco. A sala estava “à cunha”. Cheirava a suor
mascarado de desodorizante, cheirava a angústia e a desconsolo. Não cheirava a
esperança. Sem olhar, tirou o número de uma máquina que já tinha tido melhores
dias e onde se lia “Procure aqui o seu
emprego” como se a senha fosse o
passaporte para o El Dorado. Começou a espera na única cadeira vazia,
já desconjuntada, que devia ser da época da máquina das senhas. Ganhou coragem
e olhou em volta. Os rostos fechados, olhos esmorecidos e tristes, espelhos
claros de uma alma cinzenta. “ Olha o Zé António, a empresa do pai também fechou,
tal como a nossa. Estamos à procura
do mesmo. A D. Inácia? Pensava que estava empregada, sempre tão bem disposta à
hora da bica e a dizer que não tinha grandes problemas de dinheiro… O Sr.
Manuel Francisco? Mas ele apanhava sempre a carrinha de manhã e voltava à
tarde… Pois é, o orgulho ferido e ceder à realidade crua não são coisas fáceis.
Na idade deles há-de ser ainda mais difícil… muito novos para a reforma, muito
velhos para trabalhar… o discurso do costume.
O calor aumentava no ar pesado de transpiração
e o guinchar cansado do aparelho do ar condicionado exasperava-o, punha os
nervos em franja a qualquer um. Uma criança, aborrecida e encalorada, começou a
chorar, impertinente.
Avistou o funcionário do balcão de
atendimento. O André Mestre. Colegas de escola, colegas de curso profissional …
Eram amigos inseparáveis. Que saudades desses tempos que pareciam ser já tão
longínquos. O André estava sentado a uma secretária num espaço onde o ar
condicionado trabalhava silenciosamente - talvez para não envergonhar o “amigo”
da sala de espera, que se esforçava cada vez mais e refrescava cada vez menos.
O rapaz que estava a ser atendido saiu com a desesperança estampada no rosto.
“Isto está mau” disse, à laia de confidência, desanimado…
A sala ia ficando vazia e a
máquina, já roufenha, apitou e marcou o seu número a letras vermelhas
- Bom dia. Diga – a voz do André
era fria, impessoal, diferente da escola.
- Então André? Como vais? –
perguntou com amizade estendendo a mão… em vão.
- Ah. És tu. Vou já avisando que
não abro excepções para ninguém, nem amigos nem conhecidos. Aqui são todos
iguais. Eu cheguei aqui por concurso e vou cumprir o que me mandam. O resto, os
papéis é que mandam. São as contingências da vida.
- Eu não te estou a pedir nada, nem
tenho intenções de o fazer. Só quero aquilo a que tenho direito. Eu e muitos
milhares como eu. Uma oportunidade para trabalhar. Preciso trabalhar, tenho
família. – disse, com a voz dividida entre a humildade e a revolta.
Entregou os papéis, que foram aceites
com frieza. O som dos carimbos era como tiros que matavam a sua esperança. Mas
levantou a cabeça e saiu, sem estender a mão.
Não esperou muito tempo. Na véspera
do nascimento da Maria Teresa recebeu uma carta. Devia apresentar-se de novo no
centro de emprego. Ficou com o coração apertado, pediu o carro emprestado ao
pai para que a viagem fosse mais rápida, não fosse falhar o nascimento da filha
que estava quase a acontecer.
Desta vez não tirou senha, não
havia ninguém à espera, nem ouviu o barulho do aparelho do ar condicionado. E
não viu o André. O funcionário que o atendeu era pessoa nova na vila, pareceu-lhe
simpático. E cumprimentou-o com um caloroso aperto de mão.
- Está com sorte. O seu CV foi apreciado,
o seu curso de formação profissional e o seu estágio garantiram-lhe aqui um
contrato por tempo indeterminado. Vamos dar andamento ao processo para começar
o mais breve possível, isto é se aceitar. Estamos mesmo a precisar de ajuda.
Infelizmente, nos tempos que correm, estes serviços são muito procurados.
- Claro que sim, nem vou ser
hipócrita e dizer que vou pensar. Tenho família, a minha filha nasce por estes
dias.
- Ora ainda bem.
- E o André? – perguntou.
- Ah, o André. Sabe, as pessoas
escreveram muito no livro de reclamações e ele teve que sair, foi despedido.
Alguns dias depois do nascimento da
filha, começou o trabalho. Mas chegou mais cedo para poder direccionar o ar
condicionado do seu gabinete para a sala de espera, desligar o outro velhinho e
queixoso aparelho, endireitar a máquina das senhas e colocar um cartaz actual e
motivador - sobretudo de esperança - para enfrentar o mundo do trabalho – ou da
falta dele. Mas esperança e ânimo.
A sala de espera encheu-se de novo.
O primeiro cliente entrou no gabinete. Levantou-se e estendeu-lhe a mão numa
atitude afável e bem-educada, para o receber. O aperto de mão não foi
correspondido pelo jovem que estava à sua frente, cabisbaixo, envergonhado e
frio.
Era o André!
Maria Happy